Mickey 17: Distopia Cósmica com Dois Pattinsons e Zero Regras
Mickey 17 mistura clonagem, crítica social e humor ácido numa ficção científica com Robert Pattinson em dobro e a visão única de Bong Joon-ho.
ANÁLISESFILMES
Racnela
4/11/202511 min ler


Mickey 17 é uma Distopia Cósmica onde Robert Pattinson e Bong Joon-ho Atacam o Sistema com Humor e Loucura
Mickey 17 marca o regresso de Bong Joon-ho ao cinema após o sucesso global de Parasita, e fá-lo com uma das produções de ficção científica mais ousadas e desconcertantes do ano. Com Robert Pattinson em grande forma, um mundo gelado repleto de clones descartáveis e uma crítica feroz ao capitalismo selvagem e à ganância institucional, o filme é tudo menos previsível.
Adaptado do romance Mickey7 de Edward Ashton, o filme acompanha um humano considerado substituível numa missão de colonização interplanetária, onde cada morte dá lugar a uma nova versão clonada. Pelo meio, há humor ácido, tensão política, conflitos internos e uma colisão entre identidade e funcionalidade.
Com interpretações vibrantes, visuais marcantes e um tom provocador, Bong entrega um filme que é tão estranho quanto necessário.
Sem Spoilers Uma Comédia de Ficção Científica com Sangue Frio e Cérebro Quente
Mickey 17 é, à superfície, uma história de exploração espacial e clonagem. Mas à medida que se desenrola, revela-se uma sátira poderosa sobre o valor humano numa sociedade que já o esqueceu. Mickey, o protagonista, é um "descartável" cujo trabalho é morrer em nome de tarefas perigosas. Sempre que o faz, é impresso de novo com as suas memórias intactas. Simples, prático e perturbador.
O realizador equilibra o absurdo e a crítica social com mestria. Bong Joon-ho não esconde as suas intenções e usa o humor negro como arma. Cada morte de Mickey, cada interação com a hierarquia de comando, cada olhar dos colegas de missão reforça o peso do sistema que o engole vivo. E tudo isto envolvido numa estética retrofuturista que salta entre o grotesco e o belo.
O planeta Niflheim, onde se desenrola a ação, é simultaneamente imponente e desolador. As estruturas humanas no seu interior refletem a frieza da missão e a solidão da condição humana num sistema que já não vê valor na existência.
Com Spoilers Um Encontro Entre Clones Rebelião e Identidade
A viragem narrativa mais potente de Mickey 17 surge quando o protagonista, tido como morto após uma missão em Niflheim, regressa à colónia vivo, apenas para descobrir que uma nova versão sua, o Mickey 18, já foi impressa. Este é o ponto em que a sátira sci-fi se transforma num conflito existencial carregado de tensão e espelho filosófico: o que acontece quando és substituído por ti mesmo?
Ao contrário do que se poderia esperar, o filme não envereda por um caminho de confronto físico imediato. O verdadeiro conflito nasce da fricção psicológica e emocional entre as duas versões do mesmo homem. Apesar de partilharem as mesmas memórias até ao ponto da morte de Mickey 17, a vivência posterior de cada um começa a moldar traços e atitudes distintas. Mickey 17 traz consigo o trauma da morte evitada e da sobrevivência não reconhecida. Mickey 18, por sua vez, sente que é o único com direito a existir, pois é o clone oficial e legalmente reconhecido.
A interação entre os dois começa tensa e progride para uma espécie de disputa pela identidade original, como se cada um fosse um eco distorcido de uma verdade que já não existe. Este é um dos momentos mais interessantes do filme: ao duplicar o protagonista, Bong Joon-ho multiplica os dilemas éticos, emocionais e existenciais. A individualidade é colocada em causa quando tudo o que te define pode ser replicado.
À medida que os dois Mickeys interagem com Nasha, a companheira romântica do Mickey original, essa duplicidade torna-se insustentável. Nasha é colocada no centro de um impasse profundamente humano: pode uma pessoa amar duas versões da mesma essência? E quando uma começa a mudar, continua a ser “aquela”? A relação transforma-se numa lente para explorar os limites do afeto e da identidade numa realidade onde o eu é regravável.
Paralelamente, a presença simultânea dos dois Mickeys começa a destabilizar a estrutura da missão. Os tripulantes, antes conformados com a hierarquia absurda de Kenneth Marshall, começam a questionar o sistema. Esta mudança progressiva leva a uma rebelião espontânea, inicialmente desorganizada, mas com crescente adesão. As tensões explodem quando os superiores tentam “eliminar o excedente”, considerando Mickey 17 como um erro que precisa ser corrigido — mais um corpo para reciclagem.
Neste ponto, o filme deixa de ser apenas um estudo de personagem para se tornar um filme sobre revolta sistémica, sem perder o seu tom de comédia ácida. A duplicação de Mickey é o catalisador para uma série de pequenas insurreições dentro da colónia, onde outros tripulantes começam a lembrar-se de que, afinal, também são humanos. O sistema de clonagem, que era suposto ser um milagre tecnológico, revela-se uma ferramenta de dominação e desvalorização total da vida.
O clímax da narrativa constrói-se sobre uma série de confrontos entre Mickey 17 e Mickey 18, não apenas físicos, mas morais. É aqui que se percebe que o verdadeiro antagonista não é o outro Mickey, mas o próprio sistema que os força a competir pela legitimidade de existir. O dilema não é “quem é o verdadeiro”, mas “porque temos de escolher um só”.
O desfecho é inesperado pela sua recusa do confronto convencional. Mickey 17 opta por não eliminar o clone nem fugir. Em vez disso, toma uma decisão que representa o primeiro gesto genuíno de livre-arbítrio dentro da narrativa. Ele quebra o ciclo, recusa a lógica binária de ou um ou outro, e escolhe algo novo — um ato de desobediência silenciosa mas revolucionária.
Este momento ressoa com força porque recontextualiza tudo o que vimos até ali. Não se trata apenas de sátira ao capitalismo ou à cultura corporativa. Mickey 17 é, acima de tudo, um filme sobre identidade, dignidade e o direito de existir, mesmo quando o sistema insiste que és apenas uma peça substituível. É uma crítica feroz ao utilitarismo moderno, feita com irreverência visual, mas com uma alma profundamente humanista.
Sobre a Atuação Incrível de Robert Pattinson
Robert Pattinson oferece uma das suas atuações mais multifacetadas até à data. O ator encarna duas versões do mesmo homem com uma diferença subtil mas crucial. Mickey 17 é fragilizado, resignado e ingénuo. Mickey 18 é direto, sarcástico e revoltado. O trabalho de corpo, o olhar e o tom de voz mudam de uma versão para outra de forma precisa e natural.
Mesmo em cenas partilhadas, é impossível confundir os dois. Pattinson navega entre o cómico, o melancólico e o violento com fluidez e profundidade. A sua entrega é tão forte que, apesar do tom estranho do filme, nunca perdemos de vista o elemento humano. Ele carrega o absurdo com uma credibilidade rara. É uma performance para recordar.
Um Bom Filme de um Futuro Distópico
A distopia apresentada em Mickey 17 não é feita de robots assassinos nem IA superavançada. É uma distopia de decisões políticas, de exploração corporativa e de normalização da morte em nome do lucro. A clonagem, em vez de libertar, escraviza. O corpo humano é tratado como recurso renovável, e a obediência é mantida através de retórica religiosa e estruturas hierárquicas absurdas.
Neste sentido, o filme remete para títulos como:
Expresso do Amanhã, do próprio Bong, com a sua crítica de classes sobre carris
Elysium, de Neill Blomkamp, onde os pobres vivem na Terra e os ricos num paraíso orbital
Moon, de Duncan Jones, que também explora clones, solidão e memória
Brazil, de Terry Gilliam, pela sua visão surrealista de uma distopia burocrática
O que diferencia Mickey 17 é a forma como mistura todos esses elementos com um tom quase de paródia, sem nunca deixar de ser profundamente trágico. Bong transforma o grotesco em denúncia, e isso torna o filme desconfortável e brilhante ao mesmo tempo.
Forte Elenco em Papel de Destaque
Além da atuação exemplar de Robert Pattinson, o elenco de Mickey 17 é um dos pontos altos da produção.
Naomi Ackie como Nasha é uma personagem de força, humor e empatia. Não é apenas uma figura romântica, mas sim uma mulher com vontades, decisões e um papel ativo no desenrolar dos acontecimentos.
Mark Ruffalo surpreende com uma das performances mais intensas e caricatas da sua carreira. Como Kenneth Marshall, é uma mistura de líder religioso, CEO corrupto e político fanático. A sua entrega é explosiva, verbalmente caótica, por vezes assustadora e sempre memorável. Ruffalo dá ao personagem um desequilíbrio que mistura humor involuntário e verdadeiro terror. É uma sátira viva de figuras reais, e o ator mergulha de cabeça na insanidade controlada do seu papel.
Toni Collette interpreta Ylfa, esposa de Marshall, uma mulher que vive num mundo próprio onde obsessões culinárias ganham mais importância do que o colapso da missão. É um papel menor, mas com grande impacto cómico e temático.
Steven Yeun dá vida ao idiota necessário da narrativa. O seu personagem é o amigo sem noção de Mickey, sempre a fazer piadas de mau gosto e a representar o conformismo banalizado. A sua presença é desconfortável, e é suposto que assim seja. Ele representa todos aqueles que preferem rir do sistema a enfrentá-lo.
Afinal, o Que Faz de Nós... Nós Mesmos?
Mickey 17 não é apenas uma sátira à ganância ou à política de exploração. É também uma meditação íntima e profundamente inquietante sobre o que define a nossa identidade. Quando um homem pode ser replicado infinitamente, com as mesmas memórias e o mesmo corpo, onde termina o “eu” e começa apenas uma função?
Através dos dois Mickeys, o filme obriga-nos a confrontar essa questão. Ambos partilham o mesmo passado, os mesmos afectos, os mesmos traumas até certo ponto. No entanto, quando as suas trajetórias se separam, cada um passa a viver algo diferente. Começam a sentir de forma diferente, a reagir de forma diferente, a amar de forma diferente. Então, se tudo o que nos forma pode ser impresso, o que resta de único?
O filme não oferece respostas fáceis. Pelo contrário, expõe o desconforto de imaginar que talvez sejamos menos únicos do que pensamos, ou que o sistema em que vivemos nos quer convencer disso. Em Mickey 17, a ideia de alma não é religiosa nem mística — é resistência. É a faísca que sobrevive entre repetições. É a recusa de aceitar que somos apenas aquilo que nos fizeram ser.
Ao criar uma situação onde dois “eus” competem por espaço, por afeto e por sentido, Bong Joon-ho está a perguntar-nos algo que vai muito além da ficção científica: somos as nossas memórias, os nossos sentimentos, os nossos atos... ou algo que escapa a tudo isso? E se até os sentimentos podem ser replicados, o que significa ser autêntico?
No mundo gelado de Mickey 17, onde tudo é controlado, monetizado e reaproveitado, a verdadeira revolução não é fugir. É afirmar que, mesmo sendo uma cópia, ninguém sente como tu sentes. Mesmo que outro tenha vivido o mesmo, ele não és tu. E isso — essa diferença invisível — é onde mora a alma.
O Filme Que Nos Pergunta Se Ainda Somos Nós
Mickey 17 é uma obra estranha, provocadora e profundamente humana. Bong Joon-ho continua a provar que consegue fazer cinema comercial com assinatura autoral. Este é um filme que denuncia, que faz rir, que incomoda e que, acima de tudo, pensa nas pessoas dentro do absurdo.
Com visuais hipnóticos, temas sérios e atuações inesquecíveis, é uma das grandes obras cinematográficas de 2025. Robert Pattinson entrega um duplo desempenho com uma precisão rara, revelando toda a fragilidade, raiva e desorientação de um ser humano replicado até perder a noção de si. Mark Ruffalo, por sua vez, transforma o seu Kenneth Marshall numa caricatura tão desconcertante quanto assustadora, cruzando sátira política e loucura messiânica com um à-vontade impressionante. Naomi Ackie traz emoção, força e nuance à sua personagem, enquanto Steven Yeun e Toni Collette preenchem o mundo da colónia com energia, absurdo e crítica velada.
Não é uma ficção científica para todos os gostos. É uma viagem imprevisível, com tom próprio e que não cede a convenções. Mas para quem procura cinema com identidade, ousadia e uma boa dose de loucura bem aplicada, é uma experiência imperdível.
O que Bong faz aqui é dar vida a um universo gelado com um calor humano imenso por baixo da superfície. No meio de clones descartáveis, líderes lunáticos e missões absurdas, o que realmente importa são as escolhas individuais, os gestos de rebelião íntima, o direito à identidade mesmo quando essa identidade é impressa numa fábrica.
Mickey 17 junta o existencialismo de Moon, a sátira de Brazil, a frieza tecnológica de THX 1138 e o sarcasmo social de Expresso do Amanhã, tudo embrulhado na estética delirante de um filme que nunca se limita. Ao invés de seguir as regras da ficção científica tradicional, Bong reescreve-as — e fá-lo com a segurança de quem confia na inteligência do público.
É esse equilíbrio entre crítica e criatividade, entre o grotesco e o emocional, que torna Mickey 17 tão memorável. É um filme que, mesmo nos seus excessos, nunca perde de vista o essencial: a humanidade.
Nota IMDb: 6.9
Nota Aranha Velocista: 9.0







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